sexta-feira, 11 de junho de 2010

Olhar de Mãe

O menino sentou. Olhou em volta a sala bem iluminada já conhecida de anos e anos e voltou a encarar os sapatos, envergonhado, quase sem esperança de passar por aquela antiga porta de carvalho sem se sentir mal ou coisa pior.E agora, descoberto, tinha pouca dificuldades de entender seu destino.
A mãe entrou, se arrastando no chão de piso velho mas ainda imponente, afastando o cabelo do rosto e prendendo- com um elástico tosco, que não condizia com uma mulher daquela elegância e sentou à sua frente, calada. Nenhum deles sabia bem o que dizer, os fantasmas e desasossegos que tiveram de enfrentar enfraqueceram a relação, que, de repente, sem ninguém perceber, se tornara péssima e seu peso agora era tóxico para ambos. A relação conturbada até então era claramente evidenciada por um abismo que os distanciou desde a infância do menino.
Não precisavam dizer uma só palavra, se entendiam no olhar, apesar de tudo, e o da mãe fuzilava-o com o pesar de anos se mostrando relapsa, desesperadora e um pouco inconsequente, como se fosse resolver tudo, mas não. O olhar da progenitora encontrando-se com o de falsa inocência do menino, suficiente crescido para entender que aquela seria a conversa que dividiria as águas, aflições e os ânimos de ambos. Que tipo de doença mental a mãe poderia possuir para ter se descuidado do filho dessa forma? Queria ela que a vida o ensinasse, caso contrário não seria um homem, seria menos do menino que ainda mostrava ser, um monstro esguio e frio.
As intenções da mãe se revelavam no olhar mas o menino não tentava entender e se preocupava com o cadarço desamarrado e a blusa amarrotada, roupas inadequadas para ter aquela conversinha com a mãe, impecável, e claro que ela o lembraria disso, infelizmente. Ele se preocupava com a escola e outras trivialidades, frivolidades da mãe e do pai, falecido havia algum tempo, tempo não suficiente para que se tivesse esquecido do rosto e das brincadeiras. Ele sim era bom sujeito, sólido, equilibrado, trágico no fim, mais ainda após a morte do avô, que acabou por levá-lo a esse precipício precoce e triste.
Se sentia culpado pelos desvios de caráter da mãe, sentia falta do pai, que julgava ter levado à loucura pouco antes da morte o levar embora, mas se sentia feliz. A estratégia estranha de libertação da mãe o fez melhorar e piorar, como todos, mais ainda com ele, jovem, ainda meio aéreo ao tipo de acontecimento doentio que ocorria ali. Ele via tristeza e ao mesmo tempo alívio e importância no olhar da mãe doente, mas lúcida. Sim , não louca ainda, embora estivesse caminhando para isso e a tragédia enfim tomaria forma completamente.
O olhar da mãe mostrava um labirinto de coisas e a sua infância era seu novelo de lã, não deixando que se perdesse num mar sem fim de escuridão, no jogo sentimental da mãe e nos jogos de palavras. Não desejava mentir, tão logo não dizia nada. Ela , por outro lado, queria mentir, maquiar a verdade para que o garoto não se assustasse com o verdadeiro conteúdo da conversa.Tinha medo do choque que suas palavras tomariam sobre ele, tão logo, não dizia nada.E o olhar era um discurso mudo de conhecimento e covardia, que nem sempre era bem compreendido pelo menino de tão pouca idade.
O menino queria evitar constrangimentos, embora nem ao menos soubesse o que significa essa palavra. Queria poupar a mãe já gasta pelo tempo, queria salvar a última lágrima saindo do seu olhar penetrante e seus objetivos iam, um a um, desmoronando como castelos de areia na alta maré. A mãe queria abrir a boca, ensaiava um sorriso , uma onomatopéia, uma palavrinha sequer, mas terminava com a gramática em ruínas e tão sozinha por dentro que doia ficar perto dela. Ela mesma era um sorriso enviesado, maroto e não queria se revelar, medo do menino, de decepção maior ainda.

- Pode me dizer porque estamos aqui, mãe?

A mãe horrorizou-se com a pergunta do garoto, que agora assumia um ar desafiador e impetuoso, características não intrínsecas dele. Ela não esperava a iniciativa repentina e tomou um susto de cair para trás. Não ensaiara nada e estava prestes a vomitar quando ele a bombardeou com outra pergunta extremamente ofensiva.

- Vamos ficar aqui, assim, o tempo todo, calados e com essas caras feias?

Meu Deus! Ele havia ousado mencionar seu semblante e começou a demonstrar impaciência! Como sair dessa situação esdrúxula na qual o filho a colocara? O olhar agora mais perfurador do que nunca, chegava a machucar a criança e a umidade mandou por terra outro objetivo, o último agora, e deixou-o bem confuso enfim.

- Desculpe, mamãe - disse ele sem pensar, cuspiu as palavras como um pedaço de comida ruim, expulsando-as de sua boca como se não houvesse escolha- Eu tô arrependido de tudo que fiz!

Ela não disse nada. Por um momento processou o pedido de desculpas do menino tentando encaixá-lo em alguma situação específica de suas vidas, mas não conseguiu encontrar nenhuma e se desesperou, e se desarmou enfim. O olhar da mãe baixou pela primeira vez e ela começou também a encarar os sapatos do garoto. Se funcionou e ainda funcionava como um escudo protetor para ele, pensou ela, pode ser que ainda encontre forças para continuar. E o menino não viu quando a mãe baixou os olhos por completo e uma lágrima caiu de seu olhar à prova de balas e encarou aquilo como uma vitória. Não havia feito a progenitora manchar o seu olhar único, que o perseguiu e o fez pensar no verdadeiro sentido do que era ter mãe. Ele nunca teve mãe ( e que isso fique em segredo) mas é que pouco depois daquilo tudo ele aprendeu também o sentido de ser homem, mesmo que de calças curtas.

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Estudante de História e pseudo-escritor semi profissional em ascensão.Quando escrevo,expulso meus maiores medos,um deles é parar de escrever.